sábado, 1 de fevereiro de 2014

A jornada solo nas 135 milhas



Uhu! Ufa! Que visão é esta?! Aaaahhh!
O alto da Serra dos Limas, o segundo ponto mais elevado do percurso, proporciona um visual deslumbrante da cidade de Andradas e da cadeia de morros da região. A serra fica próxima ao quilômetro 70 e é uma amostra do que é enfrentado e desfrutado na Brazil 135 Ultramarathon, realizada no famoso Caminho da Fé, na Serra da Mantiqueira, entre os estados de São Paulo e Minas Gerais.
Apesar da fama da prova entre os ultramaratonistas, confesso que ela não me despertava interesse porque a considerava inalcançável, em função das várias dificuldades, da longuíssima distância (217 quilômetros), do percurso com subidas e descidas jamais vistas em qualquer outra competição, do calor extremo, dos temporais frequentes na época do evento, da dificuldade para ser aceito como atleta solo, além do custo elevado da ultramaratona.


Entretanto, surgiu a oportunidade e o convite para participar da edição do aniversário de dez anos da BR 135. Meu parceiro Raphael Bonatto, famoso e experiente ultramaratonista, me convidou para esta loucura e, sem pensar muito, aceitei de primeira. Doideira! Dias depois “caiu a ficha”: estava inscrito na mais temível e desejada ultramaratona do país, um sonho e um pesadelo.



Sem saber muito bem como treinar, aumentei progressivamente a quilometragem rodada e tentei incluir algumas subidas nos treinos. Porém, a quatro semanas da competição, lesionei o tendão numa corridinha mais rápida e por pouco não tive de abandonar o projeto. Depois, acabei decidindo não fazer a prova, por falta de grana e também por duvidar se conseguiria completar todo o percurso.
Enfim, o tendão deu uma melhoradinha, consegui viabilizar a viagem e retomar minha participação, com alguns ajustes. Desfiz todo o plano inicial, com equipe de apoio própria e me programei para realizar o projeto de outra forma, usando o mesmo carro de apoio do amigo Bonatto. A ideia era corrermos juntos e dividirmos as despesas.
Meu objetivo era claro: terminar a jornada! O limite para a conclusão da prova é de sessenta horas e eu tinha uma estratégia resumida: “devagar se vai ao longe”. Assim fui.


Chegou finalmente o grande dia. O hino nacional anunciou o começo da prova, às 8h de 17 de janeiro de 2014, em São João da Boa Vista. Momentos antes da largada, me dei conta de que estava em uma competição histórica, em uma das três provas da Copa do Mundo de Ultramaratonas Extremas Bad135. Era a realização de um sonho que eu nem ousava ter sonhado. Gigantes das ultramaratonas internacionais e debutantes no evento estavam alinhados para o início da longa jornada e, assim como eu, todos eram impulsionados pelas mil coisas que se passam pela cabeça e pela ansiedade natural do início das provas, elevada ao cubo pela importância da BR 135. Já havia passado por tantos “perrengues” para estar ali e a prova ainda nem tinha começado. Nos bolsos e na mochila, água, isotônico, aminoácidos e sal; no coração, muita fé, coragem e medo do porvir.


Tudo tranquilo, um dia lindo de sol e as ladeiras acima e abaixo honravam suas propagandas: eram insanas! No primeiro dia, passei pelo belíssimo e difícil Pico do Gavião. Que visual! Também conheci a Serra dos Limas (outra maravilha da natureza, deslumbrante) e mais sete cidades, até alcançar Inconfidentes. As cidades ficam em vales e, para chegar até elas, é preciso cruzar extensas estradas de chão batido e pedras soltas, subir até o alto da serra, descer por outra pirambeira e passar por longo trecho sinuoso com mais sobe e desce. Isso se repete em todos os treze pontos da corrida.


Até o quilômetro 70, a alimentação e a hidratação foram perfeitas, com o apoio bem próximo do Rafa e da Carol (meus anjos da guarda). Depois desse ponto, acabei me distanciando um pouco do Bonatto. Ele teve problemas estomacais e reduziu o passo para se recuperar. Então, o carro de apoio ficou com ele e eu segui em frente, levando comigo alguns suprimentos na mochila. Para me dar um pouco de auxílio também, na medida do possível, o carro ia e vinha pelo percurso.


Uma das magias da prova é que as equipes oferecem ajuda para os outros atletas. Tive muito apoio de várias equipes pelo caminho. Sempre que me avistavam, ouvia a doce frase: “precisa de alguma coisa? Quer coca-cola, água ou gatorade?”. Sem dúvida, a prova é povoada por anjos.


Assim fui até Inconfidentes (quilômetro 115), quando parei para tomar banho, jantar e tirar um cochilo. Cheguei ao ponto de apoio às 22h19, com 14 horas de prova. O tempo estava bom, abaixo do que havia planejado para completar a distância. Eu, porém, estava exausto, cheio de barro, com meias e roupas molhadas e me sentindo debilitado. Jantei, tomei banho e fui me deitar. Fechei os olhos para um descanso rápido. Que piada! Quase não levantei mais, perdi a noção do tempo e dormi por quatro horas. Um luxo no meio da competição.
Depois do belo descanso, me arrumei para voltar a correr e o Rafa me ajudou a preparar a mochila com tudo que precisava para seguir meu caminho. Às 3h30 da madrugada de sábado, num breu incrível, parti para os derradeiros 102 quilômetros. Estava alimentado e usava meias, roupas e tênis secos. Saí embalado, noite adentro, disposto a tentar recuperar um pouco do tempo “perdido” dormindo e, nessa empolgação, peguei uma estrada errada. Corri cerca de 2 quilômetros e, depois de muitas subidas e descidas, cheguei a um aras. Que perigo, às 4h da madruga, eu estava fora da rota da prova e havia entrado em uma propriedade particular (poderia ser confundido com um ladrão e até levar um tiro). Retornei por outros 2 quilômetros e encontrei o caminho certo. Localizei a seta que deixei de ver com minha pressa. Ah, esqueci de mencionar, a sinalização do percurso da prova (o Caminho da Fé) é feita por algumas setas amarelas, pintadas em postes, cercas, placas, pedras ou no chão.


Nessa situação, entendi como correr à noite é bastante complicado. Ver as setas amarelas de sinalização do percurso não é fácil durante o dia e, na escuridão, torna-se um desafio, mesmo com a ajuda da ótima lanterna que eu usava (gentilmente emprestada pelo meu ultra-amigo João Sacks).
Descobri que a Serra da Mantiqueira tem dupla personalidade. Durante o dia, encanta com um visual deslumbrante, paisagens lindíssimas, muitas plantações e animais (como porcos, galinhas e grandes bois e vacas). À noite, porém, tudo se transforma. O vento move os galhos das imensas árvores e seu som se propaga na imensidão. A silhueta dos troncos cria seres monstruosos em meio à escuridão. Ao longe, os olhos dos majestosos bois se transformam em bolas de gude flamejantes. O som dos animais rompe o silêncio: corujas, sapos, pássaros e outros bichos completam uma sinfonia amedrontadora. Em meio a esse cenário, eu me senti oprimido e, na solidão da intensa noite, mentalizei coisas boas para não desistir e para não chorar, tendo ainda claro o objetivo: eu vou chegar! Pensei na minha linda e amada esposa, nos meus filhos queridos e nos amigos que torcem por mim.


Apesar do horário, fazia muito calor naquela madrugada. Para complicar um pouquinho, a mochila de hidratação não estava funcionando (soube depois que uma trava de segurança impedia que a água saísse). Assim, cada vez que queria tomar água, precisava parar, tirar a mochila e abrir a tampa do reservatório para beber do jeito que dava. Uma trabalheira de fazer rir (ou chorar). Outro contratempo eram as pedrinhas que insistiam em entrar no tênis, me forçando a parar várias vezes para retirá-las.
Só me restava correr e, quando amanheceu, próximo das 6h, cheguei à cidade de Borda da Mata. Faminto, encontrei apetitosos chineques de creme num pequeno mercado. Que banquete! Após acalmar o estômago, voltei à carreira, afinal ainda tinha um dia inteiro de aventuras.
Por volta das 15h, o sol era de matar. Meu almoço, ao meio-dia, havia sido macarrão instantâneo e depois disso tomei um gelzinho e nada mais, além de água, claro, muita água. Em uma das curvas seguintes do caminho, vi uma pequena venda, do outro lado de uma simpática pracinha, e resolvi entrar para comer algo. Que surpresa aprazível! O dono do boteco tinha acabado de fritar pastéis de queijo. Não hesitei, abocanhei dois daqueles deliciosos pastéis e uma supergelada gasosa de framboesa. Que delícia! Nunca mais me esquecerei daquele gosto. Após a bela degustação, peguei mais um refrigerante para a viagem e segui em frente.


Mais 16 quilômetros corridos e alcancei Tocos do Moji, uma bela cidade mineira. Fiz mais uma rápida parada no check point para comer uma pera e comprar mais garrafas de água. O corpo já tinha sido duramente castigado e o pior ainda estava pela frente: as pedreiras entre Estiva, Consolação e Paraisópolis, exatamente uma maratona, 42 quilômetros de muita dureza. Além do desgaste da distância já cursada, transpor os paredões foi como subir uma rampa muito íngreme, com pedras soltas e um sol de 40º C na cabeça. São trechos tão sacrificantes, que, no Caminho da Fé, ao final desses morros, há uma capela com local para ajoelhar e orar. É para agradecer mesmo. Afinal, chegar até ali é um milagre.


Depois de muitos outros aclives e declives, lindas paisagens e tempestades de final de tarde que encharcavam roupas, meias, tênis e gelavam o corpo, a noite me alcançou. Na última vez em que estive com o carro de apoio, não peguei a jaqueta corta vento e o colete noturno, pois tinha o plano de fechar a prova ainda durante o dia. Ledo engano! A essa altura, eu descia os paredões de costas, pois a dor nos joelhos e nos quadríceps era intensa e fui descobrindo que tal método amenizava o castigo à minha musculatura. Graças a Deus encontrei minha lanterna no fundo da mochila e pude continuar, ainda com um pouco de água e alguns damascos que haviam sobrado no bolso.
Saindo de Consolação, passei por um longo trecho asfaltado e plano, depois voltei à realidade dos morros. Virei para a direita, enfrentei outra longa subida, virei para a esquerda e comecei a descer. Já era possível ver as luzes da cidade da chegada e a alegria tomou conta de mim. Fiquei animado, mas ainda faltavam cerca de cinco quilômetros de pirambeiras pela frente. Os trechos finais reservam a parte mais difícil da prova, com subidas e descidas muito íngremes. Uma loucura!


Enfim, às 21h51 do sábado, dia 18, alcancei a cidade de Paraisópolis. O nome é perfeito, um paraíso para quem se lança nesta maravilhosa jornada. Foram mais de 37 horas de muitas emoções. Uma experiência inesquecível, sem dúvida, a mais dura corrida da qual já participei. “Uma prova digna”, é certo, um exercício para testar ao extremo os limites do corpo e da mente.


Não quero usar de falsa modéstia. Após concluir a BR 135, me sinto um casca grossa. O índice de desistência desta ultramaratona é muito grande. Em 2014, mais de um terço dos atletas que começaram a prova não conseguiram concluí-la (de 130 atletas da categoria solo foram apenas 85 concluintes).
Parabéns a todos os ultramaratonistas, às equipes de apoio e aos organizadores.
Parabéns ao grande Bonatto! Obrigado por ter sido meu companheiro neste caminho!


Obrigado aos maravilhosos Rafa e Carol. Sem vocês, nada disso seria possível.



Obrigado à minha linda, companheira e parceira, que torce incondicionalmente pelo meu sucesso e está sempre superpreocupada com as maluquices do seu marido e, agora, finisher da Brazil 135 Ultramarathon no Caminho da Fé.


Beijos, minha linda.

9 comentários:

  1. Maravilha mesmo foi ver esse ultra correndo naqueles campos, como se as dificuldades do percurso não existissem. Parabéns, meus e de toda a Equipe Acrimet.

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  2. Fantástico, MP e Bonatto! Parabéns aos dois!!! Que prova! E que demonstração de foco, força de vontade, e determinação! Grande abraço!

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    1. Obrigado André, pela torcida e apoio de sempre. Abraço.

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  3. Obrigado, Maria Helena, o apoio de vocês também foi muito importante para que conseguisse chegar.

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  4. Emocionante... Impossível romper as lágrimas ao imaginar a sua superação, a sua vontade de chegar até o final de uma prova onde o prêmio está dentro de você... Me preocupo muito com a sua saúde, e prinicipalmente com seu coração, mas, parabéns, parabéns mil vezes!!!
    ( só espero que não tente repetir a dose antes de 1 ano, tá?)
    Carlos Alberto, Carol e mamãe

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    1. Obrigado, querida Rosane e sobrinhos queridos, Carol e Carlão, suas palavras e a sua torcida e preocupação emocionam e alegram. Obrigado, de coração. Pensar em todos vocês foi gasolina para terminar este desafio. Fiquem tranquilos, emoção e segurança sempre juntos. Bjs.

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  5. Parabéns!!!!

    Comandante Mario Lacerda
    Brazil135 Ultramarathon
    Race Director

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  6. E aí Marcos Paulo. Primeira vez por aqui.
    Parabéns pelo blog e pelas longas corridas.

    Caraca, vc mandou bem nos 217 km ... caramba é mta coisa, só de ler que errou o caminho as 4h da madrugada e entrou em propriedade privada ... doideira.

    Sou iniciante, com 13meias no currículo, tentando um sub 1h30.

    Abraço.

    já te seguindo,

    visite nosso blog corridaderuams.blogspot.com.br

    Rodrigo Augusto

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  7. Meu amigo fantástico seu depoimento da BR, essa Ultra sonho faze-la um dia, parabéns realmente vc é um casca grossa, rs e outra conheci o Bonatto seu parceiro nessa prova nesse fim de semana, gente boa, abraços e sucessos nas corridas!

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