terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Mundial de 100 km?! Vai se Qatar!



Era a última volta. O telão gigante colocado ao lado da linha de chegada registrava que havia completado 19 voltas no percurso. Olhei para o meu Garmin, já quase sem espaço para tantos quilômetros, e ele me mostrou que, se apertasse o passo, conseguiria fechar a prova em menos de oito horas. Segui pisando firme e decidido a acelerar. Reta, curva para a esquerda, outra reta, curva para a direita, tomei um fôlego, peguei ainda um derradeiro copo de coca-cola gelada e sorrindo, pela última vez naquela competição, passei pelo posto de apoio da equipe brasileira, que estava a um quilômetro da linha de chegada. Vislumbrando o fim da prova, gritei para o professor Mariano: “a bandeira!!”. Ele disse: “o Marcio já levou! Já está lá!”. Fiquei indignado por uns 15 segundos, havia planejado chegar com a bandeira do Brasil...
Tentei acelerar outra vez. Passei por mais algumas curvas fechadas e, finalmente, encontrei a reta da chegada. Que alegria! Naquele momento, revi em pensamento tudo que me levou até as Arábias. No início do funil, estava o Marcio. Sorrindo, ele me entregou a bandeira do Brasil e me deu parabéns! Agradeci e segui no tradicional aviãozinho de chegada, tendo a felicidade estampada num largo sorriso de satisfação e de euforia por mais um sonho realizado.


Esta história começou em agosto com o gesto solidário de um amigo, durante outra ultramaratona (os 105 km entre as cidades de Morretes e Guaraqueçaba). Foi lá que conheci o Yan, vice-campeão da prova, o qual me disse: “você tem um ritmo bom. Um amigo de Santos está montando uma equipe para o mundial de 100 km e está precisando de um atleta. Você gostaria de participar? Posso indicar seu nome”. Gentilmente, ele fez isso. Dias depois, estava eu em contato com o Marcio, o amigo do Yan, para saber mais detalhes sobre o mundial. Foi um gesto nobre e generoso que deu início ao meu sonho de participar de um mundial de ultramaratona do outro lado do planeta.


A qualificação para a participação no mundial foi o resultado alcançado na Volta do Lago em 2013. A estreia nos 100 km me levou para a estreia em provas internacionais.
Mas as boas conquistas nunca são fáceis. Seguiram-se muitos telefonemas, e-mails, mensagens, conversas com a CBAt e com o professor Mariano e o Susso. Apenas poucos dias antes da viagem tive nas mãos as passagens para Doha, capital do Qatar. Tudo começou com um “será?” e, enfim, estava ali a materialização de que o mundial iria acontecer para mim.
Uma possibilidade ventilada em agosto durante um bate-papo pós-ultra, quando estava ainda meio atordoado, se concretizou, em novembro, em uma grande emoção. Eu me tornei um dos integrantes do “Quarteto Fantástico”, apelido criado pela minha esposa linda e talentosa, que colaborou para a promoção do grupo nas redes sociais.
Assim um fato inédito e histórico se deu: pela primeira vez, uma delegação brasileira disputou um mundial de ultramaratona. O dedicado time foi composto por dez integrantes:
• Oscar Susso e Claudio Levi foram os coordenadores da delegação.
• Léo e Marcão integraram a equipe de reportagem.
• Os professores Herói Fung e Mariano Moraes formaram a comissão técnica.
• E os atletas Marcio de Oliveira, Sinval Moreira, Eduardo Calisto e Marcos Paulo Espirito Santo entraram na pista para defender a camisa brasileira.


Um projeto grandioso como esse é muito bonito, porém muito caro. Tudo só foi possível pela boa vontade dos amigos e das empresas que patrocinaram a viagem da delegação. O Susso e o Claudio suaram a camisa até os "45 minutos do segundo tempo", sem descanso, dia e noite, para conseguir os patrocínios. Há muito a agradecer à Sysbuilding e à Senpar Terras, empresas que possibilitaram que toda a delegação estivesse no Qatar, representando o Brasil.


Eu também contei com o apoio e o patrocínio de dois grandes amigos, parceiros que acreditaram em mim e colocaram a mão no bolso para me ajudar a realizar este sonho. Tenho muito a agradecer à Transoft e à Natucoco, empresas que dão exemplo e apoiam o esporte.



Chegar a Doha foi um longo caminho, que incluiu mais de 20 horas de viagem aérea. A capital do Qatar é uma cidade diferente de tudo que já vi, com construções imponentes, muito cinza e bege por todos os lados. Seus moradores são personagens bastante distintos de nós brasileiros: as mulheres usam trajes negros, que as cobrem dos pés à cabeça, deixando à mostra apenas seus olhos; os homens usam longas túnicas brancas e passeiam pelas ruas segurando suas masbahas (espécie de terço). O povo desse país árabe é mais tenso e sério do que nós brasileiros e busca se abrir para o mundo através do esporte.


Aterrissamos em Doha em 19 de novembro. A corrida teve início no dia 21, às 18h. O horário foi escolhido para tentar amenizar o clima enfrentado pelos atletas. No inverno de Doha, o calor chega a 40º C durante o dia.
Quando foi dada a largada para o 27º IAU Championships Ultramarathon 100 km, a temperatura era de cerca de 24º C e a umidade era baixa. A prova aconteceu dentro do Complexo Esportivo Aspire, num percurso que incluiu 20 voltas de 5 km. Os atletas usavam um chip para o registro das voltas. No trajeto, havia cerca de seis curvas fechadas e o piso era 70% de calçada e os outros 30% de asfalto.


Comecei a prova pensando no bate-papo com meu técnico, o professor Siqueira. Ele me orientou a segurar o ritmo no início, acelerar no meio e finalizar! No desenrolar das passadas, foi mais ou menos isso que aconteceu. Mas após 50 km de prova, com 3h43min, já me sentia bastante desgastado e ainda estava apenas na metade da minha aventura. Tive de parar duas vezes para o mestre Herói Fung “desembolar” minhas panturrilhas.
A segunda parte da prova foi mais sofrida. Precisei incluir o consumo de anti-inflamatório e de coca-cola e recorrer a algumas caminhadas para tomar fôlego, seguindo o padrão de esforço extremo empregado nas ultramaratonas.
Por fim, alheio a todas as adversidades e concentrado no objetivo de completar mais este desafio, cruzei a linha de chegada eufórico, após 8h02min, na 66ª posição geral, ajudando o time brasileiro a conquistar a 14ª colocação entre as 39 delegações presentes no mundial.


Depois de concluir esta tão importante competição, fiz um balanço dos últimos 12 meses e constatei que eles foram animados.
• 122 km da Ultramaratona Paraná 12 h (dez. 2013)
• 217 km da BR 135 Ultramarathon (jan. 2014)
• 100 km da Volta do Lago (jun. 2014)
• 105 km da Ultramaratona Morretes-Guaraqueçaba (ago. 2014)
• 100 km do Mundial de Ultramaratona (nov. 2014)
Além das ultras, fiz três duras provas de montanha.


O objetivo era correr mais rápido neste mundial, mas o cansaço me pegou e o que consegui foi o meu melhor no momento.
Faço um agradecimento especial a Deus por tudo e à minha amada esposa Vivi pela paciência e por me ajudar e me acompanhar sempre. Agradeço também a todos os amigos e amigas que torceram, incentivaram, comentaram, curtiram e enviaram pensamentos positivos e orações. Fico emocionado e lisonjeado com todo o carinho que recebo.
Como já mencionei, esta foi minha primeira prova fora do país e voltei para casa com o entusiasmo renovado. Copio aqui as palavras da atleta Ellie Greenwood, campeã do mundial de ultramaratona de 2014: “estou feliz, mas gosto de pensar que tenho um tempo melhor de 100 km dentro de mim”. Vou em busca dele!
Não posso deixar de citar os grandes troféus da viagem: os amigos valiosos que conquistei. Nós nos conhecemos no mesmo dia do início da nossa aventura e passamos uma semana juntos, como uma família; sempre unidos, sorrindo, chorando e lutando para representar da melhor forma possível o nosso país.


Gostei muito de estar em uma competição tão grandiosa e, em 2015, o destino é a Holanda.


O novo projeto já começou!

Beijos, minha linda.

Fotos: Mariano Moraes, Brazilian Ultrarunners, Aspire.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Descobri que te amo demais


Com a inspiração do Zeca, encontrei o início e a essência da felicidade. Descobri que amo demais a Deus e aos meus filhos. Amo demais a vida, um novo amanhecer, sempre uma nova oportunidade. Amo demais viver a corrida da vida ao lado do meu amor, minha linda esposa, companheira de todas as horas. Descobri que amo demais encontrar amigos verdadeiros, que abrem mão do seu tempo, que abrem as portas da sua casa e do seu coração para receber novas amizades. Descobri tudo isso correndo, olhando para o lado, lá pelo quilômetro 76, num trecho íngreme da famosa subida da Barragem do Lago Paranoá, quando estava quase esmorecendo, exausto, intercalando caminhadas rápidas com trotes curtos, sem me permitir, contudo, desistir ou mesmo imaginar parar.


Era só olhar a expressão de fé, de confiança e de garra do meu novo e incansável amigo Paulo Sergio para me manter na luta. Voltando o olhar para trás, vi todos os quilômetros em que ele esteve ao meu lado, desde antes da primeira passada, com sua superbike, com os providenciais géis, água, Coca-Cola gelada, bisnaguinhas, frutas, água de coco, jujubas da Gabi e palavras de apoio.


Ninguém vence sozinho, é certo! Além do Paulo, estavam comigo a querida Gabi, registrando tudo com sua câmera fotográfica; a Soraya, guiando com maestria o carro de apoio e correndo nos postos e mercados próximos para comprar mais água, gelo e lanches para todos; e, como sempre, minha linda Vivi, separando e organizando a suplementação, os alimentos, as bebidas, me puxando nas trilhas e subidas. Todos eles passando motivação com gritos de incentivo a cada momento.


Tenho certeza de que vencemos. A corrida foi dura. Os primeiros 50 quilômetros da Volta do Lago são ótimos, o percurso é favorável e o sol apenas começa a se animar. Optei por uma estratégia ousada, fechando um pouco mais rápido do que programado essa parte da ultramaratona. Alguns atletas puxaram um ritmo forte no início, porém, na dúvida, sem saber exatamente se iriam suportar aquele pace ou quebrar, procurei não deixá-los abrir muita vantagem. Foi nesse momento que errei ao basear minha prova no desempenho de outros. Em qualquer competição (e numa ultramaratona mais ainda), é fundamental correr o que foi treinado. Apesar dos apelos do Paulo e da Vivi, não segui essa estratégia e acabei correndo mais forte do que deveria, o que me foi cobrado depois. Na segunda parte da prova, com o sol a pino e a altimetria castigante (que inclui trilhas complicadas e aclives acentuados), além da estafa muscular que me torturou, meu ritmo caiu muito. Os que haviam saído na liderança não completaram a prova e os três primeiros colocados vieram de trás. Ainda assim, apesar da queda brusca no rendimento, cruzei a faixa em quarto lugar, com um bom tempo.


É muito bom ser o primeiro a chegar, mas, também, é muito bom apenas chegar. A ultramaratona Volta do Lago Caixa é uma prova bastante difícil. Seus 100 quilômetros reservam surpresas. Afirmo, sem titubear, não teria completado a prova sem os anjos que me apoiaram em cada quilômetro.


Certamente, vencemos a prova, vencemos o cansaço, a vontade de parar e as dores. Vencemos ao concluir, assim como são vencedores todos, do primeiro ao último a cruzar a linha de chegada.
Cada aventura tem sua história. Nesta, descobri que amo demais correr, fazer amigos e viver mais uma grande emoção. Ficou, porém, um gostinho de quero mais. Quero melhorar e, portanto, já começaram os treinos para a Volta do Lago Caixa 2015. Se meu time me aguentar, novamente, estarei lá; sem eles, nem começo.
Beijos, minha linda.


Meu agradecimento especial ao patrocinador máster (Território Mountain) e aos apoiadores que também fizeram meu sonho se tornar realidade (TRC, Fit Premium e Nutriscience Fisio SportNutrition).

http://www.territorioonline.com.br
http://www.trcbrasil.com
http://www.fitpremium.com.br/unidades/batel
http://www.fisio-sportnutrition.com.br


Crédito das fotos: 1 e 5 (Paulo Sergio Costa); 2, 3 e 4 (Henrique Jacob); 6 (Corre pra foto).

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A corrida nossa de cada dia


O retorno à animação das passadas ligeiras, o reencontro do coração tocando a garganta por alguns segundos e o GPS registrando medidas sub 4’/km... Que alegria!
Ainda sob o efeito da longa jornada recente, saí na melhor companhia, parceira nos quilômetros e na vida, disposto a atirar-me em alguns intervalados para relembrar às pernas resquícios do ritmo de outros carnavais.
Satisfeito e realizado, concluí o proposto: oito tirinhos de mil metros, suficientes para derreter sob o animado sol de Curitiba 2014.
Então, reencontrei minha amada, que fez seu regenerativo, e retornamos juntos, em passeio animado.
Quase ao final do trajeto, o belo casal Rodolfo e Marisa passaram por nós e buzinaram um incentivo, assim como o amigo Alex. Na mesma passada, uma ambulância também buzinou para conferir nossa sanidade diante da caldeira desta manhã.
Com satisfação, amizade, segurança e muito amor, está escrita outra página de vida na nossa corrida cotidiana.
Anime-se você também!
Beijos, minha linda.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

A jornada solo nas 135 milhas



Uhu! Ufa! Que visão é esta?! Aaaahhh!
O alto da Serra dos Limas, o segundo ponto mais elevado do percurso, proporciona um visual deslumbrante da cidade de Andradas e da cadeia de morros da região. A serra fica próxima ao quilômetro 70 e é uma amostra do que é enfrentado e desfrutado na Brazil 135 Ultramarathon, realizada no famoso Caminho da Fé, na Serra da Mantiqueira, entre os estados de São Paulo e Minas Gerais.
Apesar da fama da prova entre os ultramaratonistas, confesso que ela não me despertava interesse porque a considerava inalcançável, em função das várias dificuldades, da longuíssima distância (217 quilômetros), do percurso com subidas e descidas jamais vistas em qualquer outra competição, do calor extremo, dos temporais frequentes na época do evento, da dificuldade para ser aceito como atleta solo, além do custo elevado da ultramaratona.


Entretanto, surgiu a oportunidade e o convite para participar da edição do aniversário de dez anos da BR 135. Meu parceiro Raphael Bonatto, famoso e experiente ultramaratonista, me convidou para esta loucura e, sem pensar muito, aceitei de primeira. Doideira! Dias depois “caiu a ficha”: estava inscrito na mais temível e desejada ultramaratona do país, um sonho e um pesadelo.



Sem saber muito bem como treinar, aumentei progressivamente a quilometragem rodada e tentei incluir algumas subidas nos treinos. Porém, a quatro semanas da competição, lesionei o tendão numa corridinha mais rápida e por pouco não tive de abandonar o projeto. Depois, acabei decidindo não fazer a prova, por falta de grana e também por duvidar se conseguiria completar todo o percurso.
Enfim, o tendão deu uma melhoradinha, consegui viabilizar a viagem e retomar minha participação, com alguns ajustes. Desfiz todo o plano inicial, com equipe de apoio própria e me programei para realizar o projeto de outra forma, usando o mesmo carro de apoio do amigo Bonatto. A ideia era corrermos juntos e dividirmos as despesas.
Meu objetivo era claro: terminar a jornada! O limite para a conclusão da prova é de sessenta horas e eu tinha uma estratégia resumida: “devagar se vai ao longe”. Assim fui.


Chegou finalmente o grande dia. O hino nacional anunciou o começo da prova, às 8h de 17 de janeiro de 2014, em São João da Boa Vista. Momentos antes da largada, me dei conta de que estava em uma competição histórica, em uma das três provas da Copa do Mundo de Ultramaratonas Extremas Bad135. Era a realização de um sonho que eu nem ousava ter sonhado. Gigantes das ultramaratonas internacionais e debutantes no evento estavam alinhados para o início da longa jornada e, assim como eu, todos eram impulsionados pelas mil coisas que se passam pela cabeça e pela ansiedade natural do início das provas, elevada ao cubo pela importância da BR 135. Já havia passado por tantos “perrengues” para estar ali e a prova ainda nem tinha começado. Nos bolsos e na mochila, água, isotônico, aminoácidos e sal; no coração, muita fé, coragem e medo do porvir.


Tudo tranquilo, um dia lindo de sol e as ladeiras acima e abaixo honravam suas propagandas: eram insanas! No primeiro dia, passei pelo belíssimo e difícil Pico do Gavião. Que visual! Também conheci a Serra dos Limas (outra maravilha da natureza, deslumbrante) e mais sete cidades, até alcançar Inconfidentes. As cidades ficam em vales e, para chegar até elas, é preciso cruzar extensas estradas de chão batido e pedras soltas, subir até o alto da serra, descer por outra pirambeira e passar por longo trecho sinuoso com mais sobe e desce. Isso se repete em todos os treze pontos da corrida.


Até o quilômetro 70, a alimentação e a hidratação foram perfeitas, com o apoio bem próximo do Rafa e da Carol (meus anjos da guarda). Depois desse ponto, acabei me distanciando um pouco do Bonatto. Ele teve problemas estomacais e reduziu o passo para se recuperar. Então, o carro de apoio ficou com ele e eu segui em frente, levando comigo alguns suprimentos na mochila. Para me dar um pouco de auxílio também, na medida do possível, o carro ia e vinha pelo percurso.


Uma das magias da prova é que as equipes oferecem ajuda para os outros atletas. Tive muito apoio de várias equipes pelo caminho. Sempre que me avistavam, ouvia a doce frase: “precisa de alguma coisa? Quer coca-cola, água ou gatorade?”. Sem dúvida, a prova é povoada por anjos.


Assim fui até Inconfidentes (quilômetro 115), quando parei para tomar banho, jantar e tirar um cochilo. Cheguei ao ponto de apoio às 22h19, com 14 horas de prova. O tempo estava bom, abaixo do que havia planejado para completar a distância. Eu, porém, estava exausto, cheio de barro, com meias e roupas molhadas e me sentindo debilitado. Jantei, tomei banho e fui me deitar. Fechei os olhos para um descanso rápido. Que piada! Quase não levantei mais, perdi a noção do tempo e dormi por quatro horas. Um luxo no meio da competição.
Depois do belo descanso, me arrumei para voltar a correr e o Rafa me ajudou a preparar a mochila com tudo que precisava para seguir meu caminho. Às 3h30 da madrugada de sábado, num breu incrível, parti para os derradeiros 102 quilômetros. Estava alimentado e usava meias, roupas e tênis secos. Saí embalado, noite adentro, disposto a tentar recuperar um pouco do tempo “perdido” dormindo e, nessa empolgação, peguei uma estrada errada. Corri cerca de 2 quilômetros e, depois de muitas subidas e descidas, cheguei a um aras. Que perigo, às 4h da madruga, eu estava fora da rota da prova e havia entrado em uma propriedade particular (poderia ser confundido com um ladrão e até levar um tiro). Retornei por outros 2 quilômetros e encontrei o caminho certo. Localizei a seta que deixei de ver com minha pressa. Ah, esqueci de mencionar, a sinalização do percurso da prova (o Caminho da Fé) é feita por algumas setas amarelas, pintadas em postes, cercas, placas, pedras ou no chão.


Nessa situação, entendi como correr à noite é bastante complicado. Ver as setas amarelas de sinalização do percurso não é fácil durante o dia e, na escuridão, torna-se um desafio, mesmo com a ajuda da ótima lanterna que eu usava (gentilmente emprestada pelo meu ultra-amigo João Sacks).
Descobri que a Serra da Mantiqueira tem dupla personalidade. Durante o dia, encanta com um visual deslumbrante, paisagens lindíssimas, muitas plantações e animais (como porcos, galinhas e grandes bois e vacas). À noite, porém, tudo se transforma. O vento move os galhos das imensas árvores e seu som se propaga na imensidão. A silhueta dos troncos cria seres monstruosos em meio à escuridão. Ao longe, os olhos dos majestosos bois se transformam em bolas de gude flamejantes. O som dos animais rompe o silêncio: corujas, sapos, pássaros e outros bichos completam uma sinfonia amedrontadora. Em meio a esse cenário, eu me senti oprimido e, na solidão da intensa noite, mentalizei coisas boas para não desistir e para não chorar, tendo ainda claro o objetivo: eu vou chegar! Pensei na minha linda e amada esposa, nos meus filhos queridos e nos amigos que torcem por mim.


Apesar do horário, fazia muito calor naquela madrugada. Para complicar um pouquinho, a mochila de hidratação não estava funcionando (soube depois que uma trava de segurança impedia que a água saísse). Assim, cada vez que queria tomar água, precisava parar, tirar a mochila e abrir a tampa do reservatório para beber do jeito que dava. Uma trabalheira de fazer rir (ou chorar). Outro contratempo eram as pedrinhas que insistiam em entrar no tênis, me forçando a parar várias vezes para retirá-las.
Só me restava correr e, quando amanheceu, próximo das 6h, cheguei à cidade de Borda da Mata. Faminto, encontrei apetitosos chineques de creme num pequeno mercado. Que banquete! Após acalmar o estômago, voltei à carreira, afinal ainda tinha um dia inteiro de aventuras.
Por volta das 15h, o sol era de matar. Meu almoço, ao meio-dia, havia sido macarrão instantâneo e depois disso tomei um gelzinho e nada mais, além de água, claro, muita água. Em uma das curvas seguintes do caminho, vi uma pequena venda, do outro lado de uma simpática pracinha, e resolvi entrar para comer algo. Que surpresa aprazível! O dono do boteco tinha acabado de fritar pastéis de queijo. Não hesitei, abocanhei dois daqueles deliciosos pastéis e uma supergelada gasosa de framboesa. Que delícia! Nunca mais me esquecerei daquele gosto. Após a bela degustação, peguei mais um refrigerante para a viagem e segui em frente.


Mais 16 quilômetros corridos e alcancei Tocos do Moji, uma bela cidade mineira. Fiz mais uma rápida parada no check point para comer uma pera e comprar mais garrafas de água. O corpo já tinha sido duramente castigado e o pior ainda estava pela frente: as pedreiras entre Estiva, Consolação e Paraisópolis, exatamente uma maratona, 42 quilômetros de muita dureza. Além do desgaste da distância já cursada, transpor os paredões foi como subir uma rampa muito íngreme, com pedras soltas e um sol de 40º C na cabeça. São trechos tão sacrificantes, que, no Caminho da Fé, ao final desses morros, há uma capela com local para ajoelhar e orar. É para agradecer mesmo. Afinal, chegar até ali é um milagre.


Depois de muitos outros aclives e declives, lindas paisagens e tempestades de final de tarde que encharcavam roupas, meias, tênis e gelavam o corpo, a noite me alcançou. Na última vez em que estive com o carro de apoio, não peguei a jaqueta corta vento e o colete noturno, pois tinha o plano de fechar a prova ainda durante o dia. Ledo engano! A essa altura, eu descia os paredões de costas, pois a dor nos joelhos e nos quadríceps era intensa e fui descobrindo que tal método amenizava o castigo à minha musculatura. Graças a Deus encontrei minha lanterna no fundo da mochila e pude continuar, ainda com um pouco de água e alguns damascos que haviam sobrado no bolso.
Saindo de Consolação, passei por um longo trecho asfaltado e plano, depois voltei à realidade dos morros. Virei para a direita, enfrentei outra longa subida, virei para a esquerda e comecei a descer. Já era possível ver as luzes da cidade da chegada e a alegria tomou conta de mim. Fiquei animado, mas ainda faltavam cerca de cinco quilômetros de pirambeiras pela frente. Os trechos finais reservam a parte mais difícil da prova, com subidas e descidas muito íngremes. Uma loucura!


Enfim, às 21h51 do sábado, dia 18, alcancei a cidade de Paraisópolis. O nome é perfeito, um paraíso para quem se lança nesta maravilhosa jornada. Foram mais de 37 horas de muitas emoções. Uma experiência inesquecível, sem dúvida, a mais dura corrida da qual já participei. “Uma prova digna”, é certo, um exercício para testar ao extremo os limites do corpo e da mente.


Não quero usar de falsa modéstia. Após concluir a BR 135, me sinto um casca grossa. O índice de desistência desta ultramaratona é muito grande. Em 2014, mais de um terço dos atletas que começaram a prova não conseguiram concluí-la (de 130 atletas da categoria solo foram apenas 85 concluintes).
Parabéns a todos os ultramaratonistas, às equipes de apoio e aos organizadores.
Parabéns ao grande Bonatto! Obrigado por ter sido meu companheiro neste caminho!


Obrigado aos maravilhosos Rafa e Carol. Sem vocês, nada disso seria possível.



Obrigado à minha linda, companheira e parceira, que torce incondicionalmente pelo meu sucesso e está sempre superpreocupada com as maluquices do seu marido e, agora, finisher da Brazil 135 Ultramarathon no Caminho da Fé.


Beijos, minha linda.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

A história dos 100



Ir a Brasília e correr 100 quilômetros foi um desafio arrojado.
Não conseguiria jamais concluir a aventura sozinho. O apoio veio de todos os lados: de pessoas e empresas que acreditaram que eu poderia sobreviver a tal insanidade e me auxiliaram com proventos financeiros e dicas valiosas, com abraços e brados de boa sorte, com curtidas, twitadas, e-mails e muitos pensamentos positivos.
Levei esses incentivos comigo e, nos momentos mais difíceis da prova, quando as pernas fraquejaram, a lembrança de toda fé, todo carinho e amor me fez prosseguir. Quando a Volta do Lago Caixa começou pra valer, lá pelo quilômetro 75, muitos estavam ali, de mãos dadas comigo, em pensamento.
Cheguei à capital federal no sábado à tarde, depois de passar a manhã toda no aeroporto, em Curitiba. Em Brasília, a primeira tarefa foi abastecer o carro de apoio com água, frutas, gelo, pão etc.
A largada da maratona estava prevista para as 5h30. Assim, o despertar no domingo, 9 de junho, foi por volta das 4h e o café da manhã se resumiu a suco de caixinha e bisnaguinhas com queijo.
Os primeiros quilômetros foram tensos, pois tive alguns imprevistos antes da largada. Felizmente, logo foram superados. Afinal, a labuta estava apenas no começo e eu estava obstinado a ultrapassar a linha de chegada.


O início da ultra se deu ainda na escuridão, tendo como cenário a bela arquitetura iluminada do Niemeyer. Integrei um pequeno pelotão de cerca de nove atletas, que se manteve à frente. O ritmo foi comedido, pois, na minha estreia em uma prova de 100 quilômetros, achei de bom tom ser cauteloso. O pace do pelotão se mantinha entre 4'25” e 4'35”/km. Passado algum tempo, o atleta nº 13 tomou a dianteira e eu, que nesse momento tinha meus ombros livres da mochila (abastecida com todos os suplementos) que precisei carregar até o quilômetro sete, fiquei mais leve e tranquilo. Emparelhei com o atleta e segui liderando a prova com ele.


Fizemos amizade naqueles trechos que corremos juntos, batemos papo, tiramos fotos, agradecemos a Deus, em alta voz, pelas belezas da natureza e, enquanto o sol nascia ao nosso lado, nos ajudamos mutuamente. Aureliano foi um grande companheiro de prova. Apesar de toda a animação, o ritmo de corrida nesse momento era de 4’20”/km. Ritmo forte, afinal, à frente restavam ainda um pouco menos de 80 km. Depois de uma subida íngreme, na altura do quilômetro 30, meu companheiro reduziu o passo. Daí em diante, segui sozinho na liderança.


Encontrei algumas boas retas e descidas. Aumentei ainda mais a velocidade e, em alguns quilômetros, o pace se manteve em 4’/km, quando consegui abrir boa vantagem do segundo pelotão, me distanciando cerca de 1,5 quilômetro.
Desde o início da prova, fui bastante cuidadoso com a alimentação e a hidratação. A Roberta e o Hélio, meus anjos em Brasília, foram ótimos apoiadores, me dando suporte, me incentivando e registrando todos os momentos da prova.


Por volta do quilômetro 60, na longa subida da represa do Lago Paranoá, dei a primeira caminhadinha de alguns metros e pude relaxar o esqueleto já cansado. O sol estava forte e o ritmo começou a cair. Num ponto de retorno em que os atletas se encontravam, próximo do quilômetro 75, observei que um corredor de camiseta amarela vinha em ritmo forte, no meu encalço, a pouco mais de quatrocentos metros. Confesso que sonhava com a vitória, porém, quando percebi a aproximação do segundo colocado, em ritmo bem melhor que o meu, esmoreci.


Após o quilômetro 80, o percurso incluiu a travessia por baixo de algumas pontes, descendo pequenas ladeiras acentuadas e voltando a subir do outro lado das pontes. Com a musculatura já em frangalhos e as cãibras se manifestando, numa dessas travessias, na altura do quilômetro 85, o atleta de camiseta amarela me ultrapassou. Cortês, quando passou por mim, me desejou boa sorte e seguiu, assumindo a liderança. Nesse momento, sabia apenas que ele era um dos 34 ultramaratonistas guerreiros da Volta do Lago. Mais tarde, descobri que ele era muito mais do que isso. Sem forças para reagir, segui na segunda colocação. Nessa altura da competição, percebi que as grandes distâncias demandam estratégias bem elaboradas, sendo fundamental conhecer o próprio ritmo, as condições da prova e, também, o pace dos adversários.


Faltando pouco mais de dez quilômetros para o final da prova, restava somente “a capa da gaita” e, assim, caminhei ainda algumas vezes nas últimas subidas. Nesse trecho derradeiro, o carro de apoio não podia acompanhar os atletas e, providencialmente, conheci o Fábio, amigo do ultramaratonista Juvan e ciclista da região, que passou a me acompanhar. Ele me incentivou muito, pois o líder da prova não abriu grande vantagem, estava cerca de quatrocentos metros à minha frente e, por algumas vezes, também caminhou. Apesar da motivação, eu não tinha condições de reagir. Mas segui firme e satisfeito com meu desempenho.


Agradecido a Deus e a todos que me incentivaram, cruzei a linha de chegada a bordo do meu tradicional aviãozinho. Que alegria!!! Sete horas e trinta e sete minutos após a largada, concluí os 100 duros quilômetros da ultramaratona do Lago Paranoá. O sorriso no rosto revelava mais do que felicidade, revelava o alcance com louvor da meta estabelecida nos treinos: ser sub 8 horas nos 100 quilômetros.



Depois de momentos de euforia, de comemoração e de uma breve refeição, subi ao pódio ao lado do atleta que usava uma camiseta amarela durante a prova. O corredor franzino, de poucas palavras, é nada mais, nada menos que o grande Eduardo Calixto, ultramaratonista experiente, bicampeão e recordista da tradicional BR-135, ultramaratona de 217 km que acontece na Serra da Mantiqueira. Minha conquista se tornou mais valorosa ainda por ser dividida com um atleta tão importante.



Para fechar o dia com chave de ouro, o Alexander (primo da Vivi, que tive o prazer de conhecer lá em Brasília e, gentilmente, foi me receber na chegada da prova) me mostrou os mais belos pontos turísticos da capital. Então, me reencontrei com a Brasília iluminada do Niemeyer.


Voltei para casa com a sensação de dever cumprido. Foi uma bela corrida, com fortes emoções, do início ao fim. Fiz o meu melhor e colhi um ótimo resultado. Fiquei muito feliz por ter suportado o ritmo, o que comprova que ainda posso colher bons frutos nesta nova modalidade que abracei.
Também experimentei novas amizades e desfrutei do companheirismo que impera em provas de endurance, nas quais as dificuldades e os sacrifícios são divididos por todos, que se ajudam como podem.
Espero em 2014 voltar a Brasília, desta vez com minha amada, para participar novamente da bela aventura ao redor do Lago Paranoá.
Beijos, minha linda.