Eu passava pelas ruas a correr e, durante esse tempo, era toda a cidade, eram as casas, os rostos, as vozes todas que começavam a anoitecer. Durante os dias, enganado pela serradura ou pelo que tinha de fazer, era-me fácil conduzir os pensamentos para onde queria. Se começava a pensar e me magoava a mim próprio, detinha-me na peça à minha frente: talvez uma janela inacabada, talvez o início do pé de uma mesa; e sabia que, em algum momento, sem esforço, chegaria outro pensamento, mais ameno, que havia de me entreter ou de me embalar. Mas, quando ia treinar, passava pelas ruas a correr e ninguém podia imaginar o mundo de palavras que levava comigo. Correr é estar absolutamente sozinho. Sei desde o início: na solidão, é-me impossível fugir de mim próprio. Logo após as primeiras passadas, levantam-se muros negros à minha volta. Inofensivo, o mundo afasta-se. Enquanto corro, fico parado dentro de mim e espero. Fico finalmente à minha própria mercê. No início, tinha treze anos e corria porque encontrava o silêncio de uma paz que julgava não me pertencer. Não sabia ainda que era apenas o reflexo da minha própria paz. Depois, quando a vida se complicou, era tarde demais para conseguir parar. Correr fazia parte de mim como o meu nome.
Cemitério de pianos de José Luís Peixoto (Rio de Janeiro, Record, 2008, p. 129-130)
Foto que dá título ao blog: Caio Guatelli
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Que início maravilhoso.
ResponderExcluirO blog está extremamente cuidado.
A dupla perfeita.
Parabéns.
Marie